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    Uveíte em cães: diagnóstico e tratamento

    Introdução e revisão anatómica

    O termo uveíte refere-se à inflamação da úvea, que é composta pela íris, o corpo ciliar e a coroideia.2,3 As uveítes em cães podem dividir-se em uveíte anterior (afeta a íris e o corpo ciliar, causando irite e/ou ciclite, respetivamente), uveíte posterior (inflamação da coroideia ou coroidite) e panuveíte (afeta os 3 componentes da úvea). 

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    De um ponto de vista clínico, é difícil distinguir entre irite e ciclite, por isso, normalmente, utiliza-se o termo “uveíte anterior”.

    Etiopatogénese

    De uma forma geral, a uveíte em cães pode apresentar-se como uma entidade independente ou como complicação de patologias de outras estruturas oculares. Por outro lado, pode ocorrer como doença primária ou ser secundária a uma doença sistémica infeciosa, neoplásica ou imunomediada (Tabela 1). Um estudo recente mostrou que as panuveítes eram principalmente diagnosticadas como idiopáticas/imunomediadas, embora devessem ser incluídas outras causas como blastomicose ou linfoma na lista de diferenciais.4 A erliquiose foi descrita como a doença infeciosa mais frequentemente associada à uveíte no cão,1 mas provavelmente isto terá a ver com a prevalência desta doença em determinadas zonas. Estima-se que não seja possível determinar a causa da uveíte em cerca de 50% dos casos.1

    A uveíte tem sempre como origem um dano tecidular secundário a um trauma, agente infecioso ou processo imunomediado. A partir daí, a sequência de acontecimentos inclui: aumento do aporte sanguíneo, aumento da permeabilidade vascular e migração de leucócitos para o ponto da lesão.2 No processo inflamatório das uveítes distinguem-se 3 fases: ativa (aguda), subaguda e crónica. A fase aguda caracteriza-se por ser exsudativa, podendo o exsudado ser seroso, fibrinoso, sanguinolento ou purulento. Na fase subaguda inicia-se a reação imunológica que pode terminar em cicatrização, necrose, recorrência ou cronicidade.

    uveíte em cães

    uveíte em cães

    Quadro clínico da uveíte em cães

    As uveítes podem apresentar manifestações específicas (turbidez do humor aquoso com Tyndall + ou hipópio), assim como sinais comuns a outras afeções oculares (lacrimejo, blefarospasmo, hiperemia ou fotofobia). Além dos mencionados, os sinais clínicos da uveíte em cães incluem dor (mais em casos agudos), congestão dos vasos ciliares, hifema, enoftalmia, miose, presença de precipitados periqueráticos, diminuição da pressão intraocular, edema corneal, rubeose e alterações na cor da íris, sinéquias e íris bombé (abaulamento), diminuição da visão e hiperemia conjuntival.

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    Em doentes com uveíte posterior, podem observar-se opacidade do vítreo, granulomas coriorretinianos, descolamentos e hemorragias na retina, efusão coroidal e neurite ótica. Além disso, a uveíte pode ter como sequela cataratas, glaucoma, luxação do cristalino, endoftalmite/panoftalmite e phthisis bulbi.2,3 Um estudo realizado em Golden Retrievers com uveíte pigmentar mostrou que 46% dos olhos podem acabar por ficar com cegueira devido ao desenvolvimento de glaucoma secundário.5 Nestes casos, o glaucoma desenvolve-se como consequência da obstrução da drenagem do humor aquoso por produtos residuais do processo inflamatório, íris bombé ou extensão de sinéquias anteriores.2

    Diagnóstico

    Sempre que possível, deve tentar-se identificar a causa da uveíte. Portanto, na maioria dos casos, está indicada a realização de um exame físico completo e análises gerais (hematologia e perfil bioquímico).2,3 A realização de outros exames de diagnóstico, como serologias de doenças infeciosas ou exames imagiológicos, dependerá da suspeita clínica em cada caso particular.2 Em casos com uma infiltração celular significativa, a citologia do humor aquoso pode ser diagnóstica (por exemplo, no caso de linfoma). Por outro lado, a aquocentese e posterior titulação serológica do fluido obtido permite estabelecer o papel de determinadas doenças infeciosas como causa ativa de uveíte (anticorpos no humor aquoso/anticorpos no sangue > 1).3 Por último, em todos os doentes com suspeita de uveíte deve ser feito um teste de fluoresceína que permita descartar a existência de uma uveíte reflexa (neurogénica) secundária à queratite ulcerativa. 3

    Tratamento

    O objetivo do tratamento da uveíte em cães é controlar a inflamação, estabilizar a barreira hematoaquosa, minimizar as sequelas, reduzir a dor e preservar a visão. Para tal, recorre-se ao uso de midriáticos tópicos, corticosteroides (tópicos ou por vezes sistémicos) e anti-inflamatórios não esteroides. Além disso, caso seja identificada a causa primária, a mesma deve ser tratada.3 O tratamento tópico da uveíte deve ter início no momento do diagnóstico, mesmo que a avaliação de possíveis doenças sistémicas não tenha sido ainda concluída. Deste modo, reduz-se a possibilidade de se desenvolverem sequelas.2

    Os agentes parassimpaticolíticos (atropina 1%, tropicamida) são uma parte importante do tratamento da uveíte por causa dos seus efeitos midriáticos e cicloplégicos. A atropina pode ser administrada até 4 vezes por dia até se alcançar a midríase e, a partir daí, a cada 12-24 horas para a manter.3 O seu uso está contraindicado em doentes com pressão intraocular (PIO) elevada (exceto no íris bombé), podendo nestes casos ser mais recomendável recorrer à tropicamida que, embora apresente um efeito parassimpaticolítico mais fraco, também tem efeitos mais fracos sobre a PIO.2

    Os corticosteroides tópicos são um elemento-chave no tratamento da uveíte anterior, exceto quando existem contraindicações para o seu uso (úlcera corneal). Recomenda-se o acetato de prednisolona 1% ou, na falta deste, dexametasona 0,1%, com 4-6 aplicações diárias se forem usados colírios e 3-4 se forem usadas pomadas oftálmicas.2-3 Podem também ser acompanhados de tratamento com injeção subconjuntival de acetónido de triamcinolona ou betametasona.2 O tratamento com corticoides sistémicos (1-2 mg/kg/dia) não deve ser iniciado até se ter concluído a avaliação diagnóstica de possíveis doenças sistémicas e se ter estabelecido a necessidade do seu uso (uveíte posterior ou imunomediada). Em doentes com uveíte imunomediada nos quais não há uma resposta adequada aos corticoides sistémicos ou estes estão contraindicados, podem usar-se outros imunomoduladores como a azatioprina ou a ciclosporina.2

    Podem ser usadas formulações tópicas de anti-inflamatórios não esteroides (AINE) 2-4 vezes por dia, seja como monoterapia ou associados a corticoterapia tópica, devendo os seus possíveis efeitos colagenolíticos sobre o epitélio corneano ser monitorizados em doentes com úlcera.2,3 Os efeitos a nível ocular dos AINE sistémicos não foram totalmente avaliados, mas deve ter-se em conta os possíveis efeitos secundários, como por exemplo a relação do etodolaco com o desenvolvimento de queratoconjuntivite seca.2

    De um modo geral, considera-se que há poucas indicações para o uso de antibióticos tópicos no tratamento das uveítes, exceto no caso de úlcera corneal associada. Por um lado, porque as uveítes bacterianas primárias são raras, por outro, porque os antibióticos tópicos têm uma fraca penetração a nível intraocular. Portanto, caso seja necessário, pode ser preferível recorrer a antibioterapia sistémica.2

    Conclusões

    A uveíte em cães é uma causa frequente de consulta oftalmológica. Não deve ser esquecido que uma uveíte pode ser uma manifestação ocular de uma doença sistémica. Portanto, em algumas situações pode ser necessária uma abordagem diagnóstica complexa. Para evitar a ocorrência de sequelas graves que possam levar à perda de visão, é importante implementar um tratamento precocemente, ainda antes de se concluir a avaliação diagnóstica.

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    Bibliografia
    1. MASSA KL, GILGER BC, MILLER TL, ET AL. CAUSES OF UVEITIS IN DOGS: 102 CASES (1989-2000). VET OPHTHALMOL. 2002;5(2):93-98
    2. HENDRIX DVH. DISEASE AND SURGERY OF THE CANINE ANTERIO UVEA. EM GELATT KN, GILGER BC, KERN TJ. (EDS). VETERINARY OPHTHALMOLOGY 5TH ED. WILLEY BLACKWELL. 2013; 1146-1199.
    3. TOWNSEND WM. CANINE AND FELINE UVEITIS. VET CLIN NORTH AM SMALL ANIM PRACT. 2008;38(2):323-346.
    4. BERGSTROM BE, STILES J, TOWNSEND WM. CANINE PANUVEITIS: A RETROSPECTIVE EVALUATION OF 55 CASES (2000-2015). VET OPHTHALMOL. 2017;20(5):390-397.
    5. SAPIENZA JS, SIMÓ FJ, PRADES-SAPIENZA A. GOLDEN RETRIEVER UVEITIS: 75 CASES (1994-1999). VET OPHTHALMOL. 2000;3(4):241-246.