Hipocalcemia em cães: etiologia e tratamento
Introdução
O cálcio é um elemento essencial para muitos processos celulares. É importante não esquecer que quando medimos a calcemia num doente estamos a determinar a concentração de cálcio total (tCa). O valor de tCa equivale à soma do cálcio ionizado (iCa), que é a forma de cálcio biologicamente ativa; o cálcio unido a proteínas (pCa); e o cálcio em forma de complexos (cCa).
Em termos fisiológicos, a concentração de iCa é determinada pela atividade da hormona paratireoide (PTH), o calcitriol e a calcitonina:
- A PTH produzida nas glândulas paratireoides aumenta os níveis de cálcio, promovendo a sua mobilização óssea e aumentando a reabsorção ao nível renal e a síntese de calcitriol.
- Por sua vez, o calcitriol aumenta a absorção intestinal de cálcio e a reabsorção óssea e renal de cálcio. A hipocalcemia estimula a produção de PTH e o aumento subsequente dos níveis de calcitriol, os quais, por sua vez, exercem um mecanismo de retroalimentação negativa na síntese de PTH.1,3
Causas da hipocalcemia em cães
Geralmente considera-se que as causas principais de hipocalcemia em cães são: hipoalbuminemia, doença renal crónica, tetania puerperal, lesão renal aguda e pancreatite.
Menos frequentemente, a hipocalcemia pode dever-se a rabdomiólise, hipoparatiroidismo, intoxicação por etilenoglicol, administração de enemas de fosfato ou bicarbonato de sódio.
Por último, são consideradas causas raras de hipocalcemia:
- o erro laboratorial, utilização de tubos de EDTA para a determinação da calcemia, enfarte de um adenoma paratiroide, perfusão rápida de soluções à base de fosfatos, perfusão de fluidos sem cálcio, má absorção ou jejum severo, hipovitaminose D, transfusão de sangue, hipomagnesemia, hiperparatiroidismo nutricional secundário e síndrome de lise tumoral.2,4
Um estudo recente em que se avaliou a prevalência de hipocalcemia em cães atendidos no Hospital Veterinário da Universidade de Cornell demonstrou que as causas mais frequentes de hipocalcemia em cães eram:
1.- doença sistémica grave (17,4%),
2.- lesão renal (10,4%) e intoxicações (7,5%).
Ao considerar somente doentes com hipocalcemia moderada ou grave (iCa < 1,00 mmol/L), as causas mais frequentes eram:
1.- hipoparatiroidismo,
2.- lesão renal,
3.- tetania, ou
4.- doença crítica.2
Quadro clínico
Os sinais clínicos de hipocalcemia em cães costumam aparecer quando a concentração de tCa é < 7 mg/dl ou de iCa < 0,8 mmol/L, e incluem tremores e fasciculações musculares, roçamento facial, cãibras, rigidez ao andar, agitação, desorientação, hipersensibilidade, agressão e convulsões.4
Menos frequentemente, são descritos arfar, pirexia, letargia, depressão, anorexia, catarata lenticular posterior, poliúria/polidipsia, hipotensão, paragem respiratória e morte.2,4 A hipocalcemia pode também causar alterações a nível cardiovascular, entre elas, diminuição da contractibilidade, do débito cardíaco e da resistência vascular quer pulmonar, quer sistémica, hipotensão, prolongamento dos intervalos Q-T e S-T, e arritmias ventriculares.2
Diagnóstico
O primeiro passo no diagnóstico da hipocalcemia em cães é confirmar que não se trata de um erro de laboratório e que não foram usados tubos com EDTA (com anticoagulante) para a determinação (o EDTA quela o cálcio), sobretudo quando os sinais clínicos não suportam o diagnóstico.
Por outro lado, tem de se ter em conta que, quando se faz a medição da calcemia, normalmente mede-se a quantidade total de cálcio e que as evidências disponíveis indicam que valores na classificação de hipocalcemia baseada na medição de tCa nem sempre indicam hipocalcemia quando se mede iCa. Por isso, atualmente recomenda-se que, no diagnóstico da hipocalcemia, se meça sempre o iCa.4,5
Embora no passado se tenham recomendado várias fórmulas para estimar o tCa corrigido a partir da concentração de proteínas totais ou albumina, essas fórmulas não são válidas para estimar a concentração de iCa.2,4 Por outro lado, é importante recordar que a concentração de iCa em plasma submetido a heparinização ou em sangue total pode ser menor do que em soro.4 Por isso, é importante tentar seguir sempre a mesma metodologia. Uma vez confirmada a presença de hipocalcemia e para tentar encontrar a sua causa, recomenda-se fazer um hemograma, perfil bioquímico completo e urinálise. Além disso, conforme for o caso, poderá ser recomendável determinar os níveis de PTH, de vitamina D, de calcitriol e de rPPTH.4
Tratamento da hipocalcemia em cães
O tratamento da hipocalcemia de iCa depende de se o caso for agudo ou for crónico.
TERAPIA AGUDA
- Devido à gravidade do quadro, a terapia aguda geralmente inclui a administração endovenosa lenta de gluconato de cálcio a 10% (0,5-1,5 ml/kg ou 50-150 mg/kg em 20-30 minutos).
- O gluconato de cálcio pode ser cardiotóxico. Por isso, é importante que a sua administração se faça com controlo eletrocardiográfico, prestando atenção ao possível aparecimento de bradicardia, de encurtamento do intervalo Q-T, de elevação do segmento S-T e de presença de arritmias.
- Se isso acontecer, deve-se parar a perfusão durante uns minutos, avaliar a evolução e, se necessário, continuar com a administração de forma mais lenta.
TERAPIA EM DOENTES CRÓNICOS
-
Em geral, os doentes crónicos recebem terapia oral com compostos de cálcio, derivados da vitamina D ou calcitriol.4
Conclusões
A tomada de decisões face a um doente com hipocalcemia depende da gravidade da mesma e do quadro clínico que o cão apresentar. Em doentes com quadro compatível e hipocalcemia grave, deve ser administrado tratamento com caráter de urgência porque a vida do animal pode mesmo estar em perigo. Por sua vez, em cães assintomáticos e com hipocalcemia leve, é preferível executar uma abordagem de diagnóstico completo antes de iniciar o tratamento.