VT_Tematica_Medicina interna_detail.jpg VT_Tematica_Medicina interna_detail.jpg
  • Tempo de leitura: 5 mins

    Cardiomiopatia em cães. Apenas dilatada?

    As cardiomiopatias em cães representam um grupo heterogéneo de doenças do miocárdio associadas a uma alteração da função cardíaca mecânica e/ou elétrica.

    Introdução

    As cardiomiopatias podem ser primárias (etiologia desconhecida) ou secundárias a outro processo. Geralmente podem ser classificadas como dilatada, hipertrófica, restritiva e arritmogénica do ventrículo direito.2

    [Leishmaniose canina] → Quer saber mais sobre a Leishmaniose canina e o seu  tratamento?  ↓Descarregue gratis esta Revisão sobre a doença↓

    A cardiomiopatia dilatada (CMD) é a segunda doença adquirida mais frequente em cães e a cardiomiopatia mais frequente nesta espécie.2,3 Contudo, os cães podem apresentar outras formas de cardiomiopatia que é importante conhecer.

    Cardiomiopatias em cães

    CMD (CARDIOMIOPATIA DILATADA)

    A CMD foi definida como sendo uma doença sindrómica primária do miocárdio que provoca ou uma disfunção mecânica que leva a dilatação e congestão, ou uma disfunção elétrica que causa arritmias e morte súbita, ou ambas ao mesmo tempo.3

    Do ponto de vista clínico, a CMD caracteriza-se pela presença de dilatação do ventrículo esquerdo conjugada com disfunção contrátil na ausência de condições anormais de carga e de doença coronária grave.1 Em geral, as cavidades do lado direito dilatam-se menos.2,4 Além disso, os animais afetados podem apresentar arritmias quer supraventriculares (especialmente fibrilação atrial), quer ventriculares.2

    A CMD é diagnosticada principalmente em cães de raça grande (doberman, boxer, galgo irlandês, galgo escocês, terra-nova e gran danois)3, havendo variações geográficas nas raças afetadas. Na Europa, até 58,8% dos doberman podem padecer de CMD.1,2 Há ainda outras raças afetadas com menor frequência, tais como o pastor-alemão, o são-bernardo, o labrador, o mastim napolitano, o rottweiler, o dogue de bordéus, o leonberger, o pastor-escocês, o dálmata, e cães mestiços.3 Entre as raças pequenas com predisposição para padecer de CMD, destacam-se o cocker e o cão-d’água português, em que ocorre uma forma familiar juvenil da doença que pode causar a morte entre as 2-32 semanas de idade.2,3

    O fenótipo de CMD pode ser consequência de múltiplos fatores: mutações genéticas, doenças infecciosas, sobrecargas crónicas de volume, hipotireoidismo, miocardite, tóxicos (doxorrubicina), arritmias indutoras de cardiomiopatia, e fatores nutricionais.3,5 No que diz respeito a fatores nutricionais, têm sido tradicionalmente referidas as deficiências de taurina ou de carnitina em determinadas raças e, mais recentemente, as dietas sem cereais e ricas em legumes.4-8

    Apesar de os tutores dos animais poderem percecionar a apresentação dos sinais da doença (debilidade, letargia, taquipneia, dispneia, intolerância ao exercício, síncope, distensão abdominal, morte súbita), por ser abrupta, a doença caracteriza-se por apresentar uma longa fase oculta (assintomática) e uma fase clínica muito mais curta com prevalência elevada de insuficiência cardíaca congestiva e morte súbita. O cocker spaniel representa uma exceção, pois costuma apresentar uma taxa de sobrevivência muito maior do que as raças grandes.1,4

    cardiomiopatia dilatada caes

    DIAGNÓSTICO DA CMD

    Portanto, de acordo com o anteriormente exposto, parece lógico que se tente diagnosticar a CMD na sua fase oculta. Para tal, a ecocardiografia e a monitorização Holter (24 horas) são fundamentais. Na raça doberman e em outras raças de risco elevado, é recomendado que esta monitorização de diagnóstico comece a ser feita aos 3 anos e seja repetida anualmente.1

    Em geral, considera-se normal encontrar < 50 complexos ventriculares prematuros (CVP) num registo de duração mínima de 23 horas. A presença de > de 300 CPV ou de > 50 CVP em 2 registos consecutivos considera-se ser diagnóstica de CMD oculta. De qualquer forma, a presença de CVPs (mesmo que sejam de < 50) num doberman deve sempre ser tida em conta, sobretudo se aparecerem dupletos, tripletos ou batimentos curtos de taquicardia. Nestes casos, aconselha-se repetir o Holter após 3-6 meses, tal como em cães com 50-300 CVP.1

    [Leishmaniose canina] → Quer saber mais sobre a Leishmaniose canina e o seu  tratamento?  ↓Descarregue gratis esta Revisão sobre a doença↓

    Quanto à ecocardiografia, foram propostos diferentes critérios para o diagnóstico de CMD oculta. Entre eles, mencionam-se o volume diastólico/sistólico (método Simpson) do ventrículo esquerdo > 95 ou 55 ml/m2, respetivamente; o diâmetro diastólico do ventrículo esquerdo (VId) em modo M > 46 (fêmeas)-48 (machos) mm ou o diâmetro sistólico (VIs) > 36 mm. Além disso, para o modo M, foram propostas fórmulas que têm em conta o peso do cão. O cálculo da distância do ponto E mitral ao septo em modo M e a determinação do índice de esfericidade são outros dos parâmetros que podem contribuir para o diagnóstico.

    Os biomarcadores cardíacos podem representar uma ajuda diagnóstica adicional. Valores de NT-proBNP > 500 pmol/L predizem mudanças ecocardiográficas consistentes com CMD oculta, mas não se correlacionam com a presença de arritmias. Por isso, este exame não pode substituir o Holter e a ecocardiografia como técnicas de eleição no diagnóstico de CMD. Contudo, poderá ser considerado no caso de doentes de risco cujos tutores não podem/querem fazer os exames indicados. Isto poderá igualmente ser aplicado em relação ao uso de troponinas.

    Embora o eletrocardiograma não possa substituir o Holter no diagnóstico da CMD, a deteção de > 1 CVP num traçado de 5 minutos é altamente sugestivo da presença de > 100 CVP num Holter

    Por último, os exames genéticos para deteção de CMD em cães de raça doberman são úteis nas linhas de sangue americanas, mas não o são nas europeias.1

    CARDIOMIOPATIA ARRITMOGÉNICA DE VENTRÍCULO DIREITO (CMAVD) DO BOXER 

    É uma doença familiar que se herda de forma autossómica dominante.9 Embora possam haver outras formas, foi identificada uma mutação do gene da estriatina que se associa ao desenvolvimento desta doença em muitos cães.9 A nível histológico, a CMAVD caracteriza-se por atrofia dos miócitos, fibrose e infiltração gordurosa.4,9 De um ponto de vista clínico, a doença divide-se em 3 categorias: cães assintomáticos com taquiarritmia ventricular; cães com dimensões e função cardíaca normais embora com quadros de debilidade ou síncopes consequentes de taquiarritmia; e, cães com disfunção sistólica, insuficiência cardíaca congestiva, e arritmia ventricular, sendo o prognóstico especialmente pobre neste último grupo.9

    A maioria dos cães diagnosticados tem entre 5-7 anos de idade, mas, por vezes, o diagnóstico ocorre mais cedo (1-3 anos).9 O Holter é o método de referência para o diagnóstico desta doença.4,9

    São consideradas normais até 20 CVP num registo de 24 horas. Se aparecerem 20-100 CVP, recomenda-se repetir o exame após 6-12 meses. Entre 100-300 CVP monomórficos, estabelece-se a suspeita de CMAVD. Entre 100-300 CVP com dupletos, tripletos ou batimentos de taquicardia ventricular, considera-se que são cães provavelmente afetados. Finalmente, > 1000 CVP indicam que o cão está afetado e que se deve considerar tratamento.9

    Embora os boxer com CMAVD tenham o risco de morte súbita, alguns vivem vários anos sem qualquer tratamento e muitos são controlados durante longos períodos de tempo com tratamento. Recomenda-se a realização de um exame genético em todos os boxers usados para criação e em cachorros.

    Um resultado negativo indica que o cão não apresenta a deleção do gene da estriatina e que não desenvolverá CMAVD dessa origem, mas não se pode excluir a possibilidade de que a desenvolva por outro motivo.

    Se o resultado for positivo heterozigótico, há uma probabilidade de 40-60% de desenvolvimento de doença clínica. Estes cães podem ser usados para procriar com animais negativos, mas recomenda-se um Holter anual a partir dos 4 anos de idade.

    Os positivos homozigóticos não devem ser usados para procriação e devem ser monitorizados a partir dos 3 anos de idade.9

    CARDIOMIOPATIA HIPERTRÓFICA

    Em cães, considera-se que é uma doença rara com provável base genética. Caracteriza-se por hipertrofia, geralmente simétrica, e rigidez ventricular com disfunção diastólica associada sem outra causa aparente. Pode manifestar-se com arritmias ventriculares, bloqueios de condução, obstrução dinâmica do ventrículo esquerdo, regurgitação mitral e edema pulmonar. Geralmente afeta cães de raças grandes que são jovens ou de meia-idade.4

    Conclusões

    Em geral, quando pensamos em cardiomiopatias em cães, imaginamos um doberman com CMD. Embora a prevalência desta doença seja elevada nessa raça, há outras raças grandes e algumas de tamanho muito mais pequeno, como o cocker, que podem ser afetadas. Além disso, devemos ter em conta que raças como o boxer apresentam uma cardiomiopatia “própria”. Com exceção do caso de CMD no cocker, a sobrevivência destes animais costuma ser curta assim que a doença se apresenta na sua fase clínica. Por isso, é muito importante procurar fazer um diagnóstico na fase oculta da doença. Neste sentido, a monitorização Holter é especialmente importante para detetar arritmias e a ecocardiografia para avaliar a função cardíaca.

    AFF - TOFU - Guía GI Parte1 - POST

    Bibliografia
    1. Wess G, Domenech O, Dukes-McEwan J, et al. (2017). European Society of Veterinary Cardiology screening guidelines for dilated cardiomyopathy in Doberman Pinschers. J Vet Cardiol; 19: 405-415.
    2. Shen L, Estrada AH, Meurs KM, et al. (2021). A review of the underlying genetics and emerging therapies for canine cardiomyopathies. J Vet Cardiol: In Press, Journal Pre-proof, Available online 21 May 2021.
    3. Dutton E, López-Alvarez J. (2018). An update on canine cardiomyopathies - is it all in the genes? J Small Anim Pract; 59: 455–464.
    4. Ware WA. (2011). Myocardial diseases of the dog. Em Ware WA. ( ed). Cardiovascular Disease in Small Animal Medicine. Manson Publishing: 280-299.
    5. Adin D, DeFrancesco TC, Keene B, et al. (2019). Echocardiographic phenotype of canine dilated cardiomyopathy differs based on diet type. J Vet Cardiol; 21: 1-9.
    6. Walker AL, De Francesco TC, Bonagura JD, et al. (2021). Association of diet with clinical outcomes in dogs with dilated cardiomyopathy and congestive heart failure. J Vet Cardiol. Online ahead of print.
    7. Basili M, Pedro B, Hodgkiss-Geere H, et al. (2021). Low plasma taurine levels in English cocker spaniels diagnosed with dilated cardiomyopathy. J Small Anim Pract.1-10.
    8. Freeman LM, Stern JA, Fries R, et al. Diet-associated dilated cardiomyopathy in dogs: what do we know? J Am Vet Med Assoc; 253:1390-1394.
    9. Meurs KM. (2017). Arrhythmogenic right ventricular cardiomyopathy in the boxer Dog: an update. Vet Clin North Am Small Anim Pract; 47:1103-1111.