Brucelose canina: uma doença ignorada?
Introdução
A brucelose é uma zoonose de distribuição mundial da qual são diagnosticados em medicina humana cerca de 500.000 casos novos por ano.1 A brucelose canina é causada pelo B. canis, um cocobacilo aeróbio Gram-negativo, descrito pela primeira vez como causa de abortos em cadelas de raça Beagle nos anos 60.1
Em Espanha, em 2018, estimou-se que a seroprevalência de brucelose canina estava entre 0-6%. Embora não possa ser usado para obter dados de incidência, um estudo recente evidenciou que Espanha era o país europeu com maior percentagem de positividade em testes de PCR para Brucella spp entre os 15 países que remeteram amostras para um mesmo laboratório.2 Portanto, parece lógico considerar que o clínico veterinário deve estar familiarizado com o diagnóstico e tratamento desta doença.
Transmissão
O B. canis apresenta um forte tropismo pelos sistemas reprodutivo e linforreticular, o que explica que a sua principal via de transmissão seja venérea. Outras possíveis vias de contágio incluem a mucosa oronasal ou conjuntival por contacto com secreções vaginais ou urina de animais infetados ou restos de material abortado.1,3
Considera-se que os animais com maior risco de infeção serão os que vivem em zonas onde se permite a livre vadiagem dos cães (sobretudo se não estiverem esterilizados) e os cães incluídos em programas de criação, principalmente em grandes estabelecimentos de criação comerciais.1 A prática da inseminação artificial, como meio de evitar o contágio em animais reprodutores, protege o macho, mas não a fêmea, caso o sémen esteja infetado.3
Quadro clínico
A brucelose canina pode causar sinais clínicos não específicos como letargia, perda de peso, intolerância ao exercício e linfadenopatia, mas os sinais mais relevantes são os que afetam o aparelho reprodutor:
- Em cadelas expostas ao B. canis, nos primeiros 20 dias de gestação costuma dar-se a morte do embrião e reabsorção, ao passo que infeções mais tardias estão associadas a abortos entre o dia 45-59 de gestação e, portanto, recomenda-se testar para brucelose todas as cadelas que abortem nesse intervalo de datas.1
- As lesões fetais incluem broncopneumonia, linfadenite, hepatite, hemorragia renal e miocardite. Alguns cachorros podem nascer aparentemente saudáveis, eliminar bactérias no seu ambiente e morrer poucos dias depois com lesões semelhantes às citadas.1
- Nos machos, a brucelose causa epididimite e prostatite, mas a orquite é pouco frequente. Costuma produzir-se uma dermatite húmida causada pelo lamber do escroto e a qualidade do sémen pode sofrer alterações, produzindo infertilidade. Portanto, qualquer macho com problemas de infertilidade deveria ser testado para brucelose.1,3
A nível extragenital, a brucelose pode causar discoespondilite, endoftalmite e uveíte.1,2
Diagnóstico
O diagnóstico da brucelose canina pode ser difícil. Em animais infetados, a hematologia, bioquímica e a urianálise podem ser totalmente normais ou podem apresentar alterações inespecíficas.1
O diagnóstico serológico da doença pode ser feito por diferentes técnicas, mas, de um modo geral, considera-se que a sensibilidade/especificidade que oferecem não é ideal.1,3
A hemocultura (3 amostras de 3 dias consecutivos) em doentes não tratados com antibióticos foi considerado o teste de eleição para o diagnóstico da brucelose canina porque mais de 50% dos cães são bacteriémicos desde as 2 semanas pós-infeção (a serologia requer 4 semanas para a seroconversão) e até 1-2 anos depois. No entanto, a bacteriemia é intermitente porque um resultado negativo não exclui a infeção.1,3 Outra opção diagnóstica possível é a cultura de fluidos ou tecidos nos quais se espera encontrar o agente patogénico, como, por exemplo, urina, secreções vaginais, sémen, próstata, testículo ou materiais abortados.
Por último, a realização de testes PCR tornou-se muito popular em alguns países porque apresentaram uma sensibilidade maior do que a de outros testes serológicos e a obtenção das amostras é mais simples do que na hemocultura.2,4
Tratamento da brucelose canina
Embora alguns tutores possam ter dificuldade em compreender isto, deve explicar-se que a brucelose canina é uma doença zoonótica para a qual não há qualquer tratamento antibiótico com o qual se possa garantir que se vá erradicar totalmente a infeção e que as recidivas são frequentes, mesmo depois de uma esterilização hipotética.
Se, apesar disto, se der início ao tratamento médico, recomenda-se ovariohisterectomia/castração e cursos de antibióticos de vários meses, preferencialmente com doxiciclina, enrofloxacina ou estreptomicina, mesmo tendo em conta que se pode favorecer o desenvolvimento de resistências.1,3
Em cães infetados que recebam tratamento, é recomendável a monitorização posterior frequente, embora não seja fácil por causa dos custos económicos que isto pode implicar para os estabelecimentos de criação.
Em algumas zonas é obrigatória a eutanásia dos cães afetados.1 Esta medida pode parecer exagerada como normal geral, mas deve ter-se em conta a predisposição do tutor para cumprir com um plano de tratamento e prevenção que evite a possível disseminação da doença para outros animais, não esquecendo que se trata de uma zoonose. De facto, a eutanásia sem tratamento tem sido a opção recomendada por alguns autores.3,5
Prevenção
A prevenção da doença passará por limitar a exposição à fonte da infeção e testar anualmente a população exposta, assim como testar animais que sejam introduzidos num estabelecimento de criação (2 testes negativos em 4-6 semanas).1
Uma vacina eficaz poderia reduzir drasticamente a prevalência de brucelose canina, mas não há nenhuma disponível de momento.1
Conclusões
Atualmente, a brucelose canina é considerada uma zoonose reemergente. Portanto, é importante que o clínico esteja familiarizado com esta doença para poder fazer um diagnóstico correto da mesma e evitar a sua disseminação para outros animais ou seres humanos. Por não existir um tratamento 100% eficaz, exceto se existir uma norma legal que o indique, a decisão de tratar ou recomendar a eutanásia dos animais afetados deverá ser tomada em função da capacidade dos tutores de cumprirem com um programa de prevenção adequado.
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