Úlcera no olho do gato: orientações de tratamento da queratite ulcerativa
Introdução
A córnea é uma estrutura lisa, transparente e avascular que faz parte da túnica fibrosa e fica localizada na parte mais anterior do globo ocular, sendo a sua exposição às agressões muito elevada e um dos motivos mais comuns de consulta oftalmológica na clínica veterinária. A sua função principal é a transmissão e a refração da luz e a proteção dos conteúdos intraoculares. Ao ser uma estrutura avascular, a sua nutrição depende do humor aquoso e da película lacrimal.1
A córnea é composta, da parte mais exterior para a mais interior, pelo epitélio corneano, o estroma corneano, a membrana de Descemet e o endotélio corneano. As úlceras corneais ocorrem por dano e perda de epitélio corneano com ou sem progressão para o estroma.2 Dependendo da sua profundidade, podem ser classificadas como úlceras superficiais ou profundas (úlceras estromais ou descemetoceles).
Etiologia da úlcera no olho do gato
O epitélio corneano é constantemente renovado devido a processos como o pestanejar ou a dessecação. A taxa de regeneração e os mecanismos protetores costumam ser suficientes para não se produzir uma úlcera e a erosão não ter importância clínica. As úlceras surgem quando ocorre um desequilíbrio por proteção insuficiente do epitélio corneano (pálpebras, película lacrimal) ou por uma perda excessiva do mesmo.2
Os sinais mais comuns da queratite ulcerativa são fotofobia, blefarospasmo, lacrimejo excessivo ou alteração do aspeto da córnea. As úlceras superficiais são muito dolorosas, já que afetam a parte mais exterior da córnea que apresenta um maior número de terminações nervosas, ao passo que as profundas estão associadas a menos dor, mas têm uma maior gravidade devido ao risco de perfuração do globo ocular.
Uma das causas mais frequentes de úlcera no olho do gato é a infeção por herpesvírus felino 1 (FHV-1). De facto, a queratite ulcerativa é a segunda manifestação mais comum da herpesvirose felina, depois da conjuntivite. A sua apresentação inicial ocorre na forma de úlceras superficiais dendríticas que rapidamente evoluem para uma forma de tipo geográfico irregular.1-3
Outras causas comuns de ocorrência de úlceras corneanas são os traumatismos, tanto autoproduzidos (por exemplo, por coçar os olhos ou esfregá-los em algum objeto) ou por agentes externos (por exemplo, arranhadelas, golpes, substâncias químicas ou corpos estranhos). Podem ainda dever-se a problemas palpebrais ou nas pestanas (entrópio, ectrópio, triquíase, distiquíase, cílios ectópicos, neoplasias) ou a deficiências lacrimais.1,2,4 As raças braquiocefálicas apresentam uma menor sensibilidade corneana comparativamente a raças dolicocefálicas ou mesocefálicas, estando mais predispostas a sofrer estes problemas.1
Tratamento médico da úlcera no olho do gato
Identificar a causa primária da úlcera e corrigi-la é um passo imprescindível para um tratamento bem-sucedido.2,5 A maioria das úlceras é superficial e cicatriza rapidamente sem complicações, produzindo-se uma reepitelização no prazo de cerca de 7 dias.2
Em todos os tipos de úlceras está indicado um tratamento antibiótico tópico de amplo espetro para evitar as infeções secundárias ou tratá-las.2,5 A escolha do antibiótico e a sua frequência de administração dependem da profundidade e da evolução da úlcera, assim como dos resultados das culturas bacterianas.5 Recomenda-se uma frequência de duas a quatro vezes por dia como tratamento profilático nas úlceras não infetadas, devendo-se aumentar para seis ou oito vezes por dia nas úlceras estromais. Se existir o risco de perfuração do globo ocular ou uma evolução rápida da úlcera ou queratomalácia, o antibiótico deve ser administrado a cada uma ou duas horas.5 Deve evitar-se o uso de pomadas quando existir o risco de perfuração ocular, já que, se estas penetrarem o olho, provocam uma uveíte grave.2
Os antibióticos subconjuntivais ficam reservados para infeções graves da córnea quando não se conseguem alcançar níveis terapêuticos suficientes apenas com a aplicação tópica. Os antibióticos sistémicos podem estar indicados no caso de lesões indicativas de endoftalmite ou se a córnea estiver perfurada em toda a sua espessura.5 Além disso, podem ser considerados em casos de infeção por FHV-1 em que o tratamento tópico possa provocar stresse ao gato, visto que isto aumenta o risco de progressão da infeção.
A prevenção das autolesões também é uma parte importante do tratamento das úlceras e deve considerar-se o uso de colares isabelinos, dependendo de cada doente, limitando-o aos gatos que se coçam ou esfregam em objetos.2 Por outro lado, o uso de atropina tópica para induzir midríase proporciona uma analgesia potente para mitigar o doloroso espasmo do músculo ciliar presente nos gatos com uveíte reflexa secundária à ulceração. Antes da sua utilização, deve avaliar-se a produção de lágrima devido à capacidade da atropina de a alterar, o que pode interferir com a cicatrização corneana.5
Tratamento cirúrgico da úlcera no olho do gato
Embora o tratamento da maioria dos casos de úlcera no olho do gato possa ser médico, alguns requerem tratamento cirúrgico. Um exemplo é o caso das úlceras profundas quando estas progridem rapidamente (por exemplo, queratomalácia), não se produz a resposta esperada ao tratamento médico ou é identificada uma causa primária como o entrópio.6 Em úlceras com uma perda de dois terços ou mais de espessura da córnea ou em descemetoceles, a cirurgia está indicada pelo risco de perfuração corneana e consequente perda de humor aquoso, prolapso da íris e contaminação da câmara anterior. A presença de corpos estranhos, os descemetoceles e as perfurações da córnea requerem tratamento cirúrgico de urgência.
Algumas das técnicas cirúrgicas aplicadas são o uso de enxertos conjuntivais pediculados, transposição corneoconjuntival ou queratoplastias lamelares. A escolha do procedimento mais adequado depende da necessidade de proporcionar suporte tectónico e/ou vascularização.6
Todos os casos de entrópio requerem uma correção cirúrgica e a blefaroplastia de Hotz-Celsus é a técnica de eleição. Em cílios ectópicos ou distiquíases, que não costumam ser muito comuns na espécie felina, a extirpação do folículo piloso implicado é curativa.
Os sequestros corneais secundários às úlceras crónicas costumam requerer a sua excisão cirúrgica por queratectomia superficial.6 Também foi demonstrada a eficácia da queratectomia superficial para resolver queratites ulcerativas crónicas refratárias ao tratamento médico.
Conclusões
As úlceras corneanas são um dos motivos mais comuns de consulta oftalmológica. Dependendo do grau de afeção da córnea, podem ser classificadas como úlceras superficiais ou profundas. Além da identificação e tratamento da causa primária, a maioria das úlceras requer apenas tratamento antibiótico tópico, mas algumas exigem uma intervenção cirúrgica devido à profundidade da úlcera ou à sua velocidade de progressão.