Dermatite atópica canina: uso da ciclosporina
A dermatite atópica é uma das doenças com maior prevalência na dermatologia veterinária. Tanto o seu diagnóstico como o seu tratamento são complexos. A ciclosporina é um dos tratamentos de eleição para aliviar os sintomas da dermatite atópica canina, visto que a sua eficácia ultrapassa os 80%. Porém, este medicamento está associado ao aumento da trombofilia.
Dermatite atópica canina: introdução
A dermatite atópica canina é um dos problemas de pele mais comuns em cães, estimando-se que 10% a 15% dos cães sejam atópicos. Trata-se de uma doença crónica da pele que envolve inflamação pruriginosa e hipersensibilidade, afetando tanto a derme como a epiderme. Costuma afetar cães jovens, mas pode ocorrer em qualquer idade. Embora tenha um componente genético considerável, é desencadeada pelos alergénios do ambiente. A patogénese da dermatite atópica canina é complexa, mas diversos estudos realizados detetaram dois mecanismos patogénicos principais:
1. Hipersensibilidade contra alergénios ambientais: os animais atópicos respondem inicialmente ao contacto percutâneo, ou através de mucosas, com os alergénios mediante uma resposta imunitária humoral, que comporta a produção de IgE específicas. Trata-se de uma resposta do tipo T Helper-2, na qual os linfócitos T específicos produzem IL-4, IL-5 e IL-13 e estimulam a síntese de IgE específicas contra outros alergénio implicados. As IgE fixam-se mediante recetores específicos na superfície dos mastócitos cutâneos e um novo contacto com os alergénios induz a desgranulação dos mastócitos e a libertação de mediadores como a histamina, as prostaglandinas ou os leucotrienos. Neste modelo, as infeções secundárias (bacterianas ou por Malassezia) e o coçar têm um papel fundamental na manutenção ativa da resposta inflamatória.
2. Alteração na barreira cutânea: a epiderme constitui uma barreira eficaz na qual os queratinócitos ficam selados por uniões intercelulares (desmossomas) e por um cimento extracelular proteico e lipídico. Uma alteração da função isoladora da epiderme, de origem genética ou adquirida, permitiria uma maior penetração dos alergénios e seria a causa de uma resposta imunitária anormal de hipersensibilidade. A disfunção da barreira cutânea seria responsável por um aumento da penetração de alergénios por via percutânea e também de um aumento na perda de água transepidérmica (transepidermal water loss - TEWL), a qual seria responsável pela xerose característica da dermatite atópica.
O diagnóstico da dermatite atópica canina é clínico. Estabelece-se num animal com história e quadro clínico compatíveis e no qual foram descartadas outras causas comuns de prurido, em especial, a sarna sarcótica, a demodicose, a foliculite bacteriana, a dermatite por Malassezia e a alergia alimentar.
Tratamento da dermatite atópica canina
Por ser uma doença crónica, a dermatite atópica canina não tem cura. No entanto, existem diversas medidas terapêuticas e mudanças no estilo de vida que melhoram muito o quadro clínico do animal e podem alargar o período entre uma crise e outra.
As medidas de suporte gerais são intervenções que, geralmente, por si só não têm a capacidade de controlar os casos mais graves de dermatite atópica canina, mas que ajudam a avançar no controlo e permitem reduzir a dose da medicação. Por exemplo, é importante manter um controlo rigoroso dos ectoparasitas e evitar que o animal sinta demasiado calor, já que ambas estas condições podem desencadear uma crise e agravar os sintomas. Também se recomenda dar-se banho ao cão regularmente, utilizando champôs especiais para controlar as infeções secundárias, eliminar os alergénios da pele e aliviar os sintomas inflamatórios e pruriginosos. Nomeadamente, o gel de aloé vera e os ácidos gordos ómega 6 atuam aumentando a camada lipídica da epiderme, têm uma atividade anti-inflamatória marcada e ajudam no processo de cicatrização e reparação.
No entanto, a chave para controlar o aparecimento das crises e melhorar a qualidade de vida do animal baseia-se na administração de um tratamento farmacológico adequado. Atualmente, existem três abordagens terapêuticas principais da dermatite atópica canina: a imunoterapia alergénio-específica, os corticoides (tópicos ou sistémicos) e a ciclosporina. Em particular, a ciclosporina (5 mg/kg/dia, dose inicial) é uma terapia com eficácia comprovada na dermatite atópica canina e os estudos demonstram que é eficaz em mais de 80% dos casos.
Tratar o cão afetado com a dieta Atopic da Advance Veterinary Diets permite reduzir o uso de medicação, mantendo todos os benefícios do tratamento.
Uso da ciclosporina em cães
A ciclosporina é um fármaco imunossupressor, isto é, diminui a resposta imunitária celular. É útil quando o sistema imunitário apresenta um comportamento alterado (alergias e doenças imunomediadas). Nos cães, o seu uso é sobejamente conhecido no tratamento da dermatite atópica canina, entre outras aplicações. A ciclosporina também é muito conhecida em medicina humana pelo seu uso no tratamento da rejeição por parte do organismo de órgãos transplantados em seres humanos.
A eficácia da ciclosporina em cães é semelhante à dos glucocorticoides, mas tem poucos efeitos adversos, tal como comprovado num estudo realizado por Steffan J. et al.1. Este estudo avaliou diferentes ensaios clínicos em que participaram cerca de 799 cães com dermatite atópica, dos quais 84% foram tratados com ciclosporina, 20% com placebo, 9% com glucocorticoides orais e os 3% restantes com anti-histamínicos. A duração do tratamento dos animais variou entre 2 semanas e 6 meses. Durante esse período, as lesões nos cães melhoraram de 30 a 50% às 4 semanas, de 53 a 84% às 6 semanas e de 52 a 69% às 16 semanas de tratamento. Os efeitos adversos mais frequentes foram os vómitos e a diarreia, que se verificaram em 15 a 25% dos cães.
Estes resultados devem-se à ação inibidora da ciclosporina sobre a calcineurina, uma enzima que desempenha um papel essencial na ativação genética da dermatite canina, assim como na sua capacidade para reduzir a resposta autoimune ao inibir as interleucinas, particularmente a IL-2, uma citocina pró-inflamatória que intervém na reação inflamatória do corpo, no estabelecimento da memória imunitária celular e no reconhecimento dos antigénios externos e internos. Consequentemente, a ciclosporina não só proporciona um alívio dos sintomas da dermatite atópica canina, como também contribui para espaçar o surgimento das crises. Por outro lado, a ocorrência frequente de contraindicações (vómitos, hiperplasia gengival, diarreia,...) é a principal limitação deste medicamento.
Na maioria dos casos, a dose recomendada é de 5 mg/kg de ciclosporina por via oral, preferencialmente duas horas antes ou depois de comer, para potenciar a sua absorção. Após uma ou duas semanas de tratamento, os sintomas devem começar a remitir e o animal mostrará uma certa melhoria. Para se obter uma maior concentração de ciclosporina no sangue, em alguns casos, recomenda-se a administração simultânea de 5-10 mg/kg de cetoconazol.
No tratamento de manutenção, se a ciclosporina tiver sido eficaz passadas cerca de quatro semanas de tratamento, sugere-se reduzir a sua dose progressivamente até chegar à dose mínima necessária para controlar os sintomas da dermatite atópica canina. Um estudo realizado por Olivry T. et al.2 em 2003 também descobriu ser eficaz aumentar os intervalos de administração no tratamento a longo prazo com ciclosporina.
Para chegar a estas conclusões, foram selecionados 30 cães diagnosticados com dermatite atópica que começaram a ser tratados com 5 mg/kg de ciclosporina uma vez por dia durante quatro semanas. Depois, foram aleatoriamente separados em dois grupos. No primeiro grupo, reduziu-se mensalmente a dose de ciclosporina, para 2,5 e 1,25 mg/kg por dia até atingir uma redução de 50 e 75% das lesões, respetivamente. No outro grupo, aumentaram-se os intervalos de administração, sendo primeiro a ciclosporina administrada em dias alternados e depois a cada 4 dias, até ser obtida a mesma redução nas lesões que no outro grupo. Os resultados mostraram que às 4, 8 e 12 semanas não houve diferenças significativas em relação à melhoria das lesões e do prurido nos dois grupos de animais. Além disso, não foram observados efeitos adversos diferentes. Conseguiu-se reduzir a dose de ciclosporina em 12 cães do primeiro grupo e em 13 do segundo grupo, o que indica que, assim que a doença é controlada, é possível reduzir a dose de ciclosporina ou aumentar os intervalos da sua administração, mantendo a mesma eficácia. De qualquer forma, a redução da dose dependerá da resposta clínica do animal à terapêutica.
A grande margem de segurança da ciclosporina em cães, juntamente com a variabilidade interindividual limitada e a falta de correlação entre as concentrações sanguíneas e a resposta clínica, faz com que a monitorização de rotina da ciclosporina sanguínea não seja necessária na dermatite atópica canina. Do mesmo modo, geralmente não é necessário avaliar os níveis de ciclosporina antes de reduzir a dose, como constatado por Guaguère E. et al.3. Contudo, em alguns casos pode ser útil conhecer os níveis séricos da ciclosporina. Nomeadamente, quando o cão não tiver respondido à medicação ou existir um risco de toxicidade por se ter administrado ciclosporina durante um período de tempo prolongado ou juntamente com outra medicação que aumente a sua biodisponibilidade.
Efeito da ciclosporina em cães na função das plaquetas
O mecanismo de ação da ciclosporina consiste na inibição dos anticorpos T-dependentes, bem como na inibição das linfocinas. Contudo, é um fármaco associado a reações adversas, principalmente relacionadas com a função das plaquetas.
O efeito da ciclosporina sobre a membrana das plaquetas já foi amplamente estudado em humanos. A alteração destas membranas induz um estado de hipercoagulabilidade que provoca um estado pró-trombótico, aumentando desta forma o risco de acidentes trombóticos no paciente. Porém, este fenómeno ainda não foi bem estudado nos cães.
Em 2012, a equipa de investigadores do Colégio de Medicina Veterinária da Universidade do Mississippi (EUA) realizou um estudo para determinar os efeitos da ciclosporina sobre a hemostasia em cães (1), de forma a perceber se os doentes caninos apresentavam as mesmas alterações que se conhecem nos humanos. Para o efeito, escolheram-se 8 cães que receberam 2 ciclos do medicamento: um ciclo em dose imunossupressora e um ciclo em dose de atopia. Posteriormente, analisaram-se os indicadores da reação das plaquetas. Nos casos da dose de atopia, apenas se observou uma ligeira diminuição para alguns dos indicadores, ao passo que nos casos da dose de imunossupressão, todos os indicadores apresentaram uma diminuição significativa. Os resultados deste estudo parecem indicar que a ciclosporina pode provocar um estado trombofílico em cães, da mesma forma que ocorre nos seres humanos. Contudo, o seu efeito só será substancialmente relevante se for administrada em doses imunossupressoras.
Estudo da combinação de ciclosporina com ácido acetilsalicílico
Em 2014 elaborou-se outro estudo, desta vez patrocinado pela ACVIM (American College of Veterinary Internal Medicine), com o objetivo de investigar os efeitos da ciclosporina em cães, neste caso relacionada com o tratamento da anemia hemolítica imunomediada (2). Devido à sua atividade imunossupressora, a ciclosporina é utilizada nesta doença com bons resultados. Mesmo assim, um dos principais fatores de mortalidade associados a esta doença é o desenvolvimento de tromboembolismo, chegando a causar a morte em até 50% dos pacientes caninos. Dado que a ciclosporina se relaciona com a trombofilia, é frequentemente administrada em conjunto com o ácido acetilsalicílico a estes doentes. Neste segundo trabalho de investigação, estudou-se o efeito desta combinação de fármacos em 7 cães adultos saudáveis, utilizando diferentes doses de ambos os medicamentos, com o objetivo de confirmar a hipótese de que o ácido acetilsalicílico pode contrariar o efeito trombofílico da ciclosporina em cães.
Os resultados do estudo confirmaram a capacidade do ácido acetilsalicílico de inibir a função das plaquetas, ainda que o seu efeito seja especialmente visível em doses elevadas. No entanto, ao ser administrado de forma simultânea com a ciclosporina em cães, esta aparenta reduzir significativamente a eficácia das doses baixas de aspirina. São necessários estudos mais abrangentes por forma a determinar um padrão de aplicação de tromboprofilaxia no uso de ciclosporina em cães. No entanto, e como já referimos anteriormente, uma correta posologia deste fármaco, bem como a possibilidade de estudar alternativas terapêuticas, serão fatores-chave para reduzir os seus efeitos negativos.
Referências:
1. Thomason J, et al. The effects of cyclosporine on platelet function and cyclooxygenase expression in normal dogs. J Vet Intern Med. 2012 Nov-Dec; 26(6): 1389-401
2. Thomason J, et al. 2016 ACVIM Forum Research Report Program. J Vet Intern Med. 2016 Jul-Aug; 30(4): 1520-1551
1. Steffan, J. et al. A systematic review and meta-analysis of the efficacy and safety of cyclosporin for the treatment of atopic dermatitis in dogs. Veterinary Dermatology. 2006; 17(1): 3-16.
2. Olivry T., Rivierre C., Murphy K. M., Jackson H. A., Chavez F. Maintenance treatment of canine atopic dermatitis with cyclosporin: decreasing dosages or increasing intervals? Veterinary Dermatology. 2003; 14: 220.
3. Guaguère E. et al. Cyclosporin A: a new drug in the field of canine dermatology. Veterinary Dermatology. 2004; 15: 61–74.